“Carta de 1988 estabeleceu que a opção entre presidencialismo e parlamentarismo, assim como entre República e monarquia, deveria ser feita diretamente pelo povo brasileiro, em plebiscito realizado em 7 de novembro de 1993. O plebiscito ocorreu nos termos constitucionais. (…) Uma emenda à Constituição que incorpore elementos parlamentaristas no sistema constitucional, sem consulta popular, viola manifestamente a opção procedimental originária da Constituinte de 1988 e a decisão do povo, constitucionalmente tomada mediante o respectivo procedimento.”

Por Marcelo Neves
O presidente da Câmara do Deputados, Arthur Lira (PP-AL), criou recentemente um grupo de trabalho para analisar e debater a introdução do sistema de governo “semipresidencialista” no Brasil mediante emenda à Constituição. O eufemismo da expressão “semipresidencialismo”pode esconder ao observador desavisado que o objetivo é discutir a introdução de elementos do parlamentarismo na ordem constitucional brasileira. O grupo é formado por juristas de perfil conservador, com nítida desproporcionalidade regional, acadêmico-institucional e étnica em sua composição.
A introdução de elementos parlamentaristas no sistema de governo presidencial brasileiro apenas por uma emenda à Constituição é inadmissível. A Carta de 1988 estabeleceu que a opção entre presidencialismo e parlamentarismo, assim como entre República e monarquia, deveria ser feita diretamente pelo povo brasileiro, em plebiscito realizado em 7 de novembro de 1993. O plebiscito ocorreu nos termos constitucionais. O povo brasileiro escolheu a República presidencial como forma e sistema de governo.
Alguns afirmam que essa opção plebiscitária se transformou em cláusula pétrea, tendo tornado imutável a forma republicana e o sistema presidencial. Podemos ser mais flexíveis para admitir que aquela decisão popular direta possa ser superada por emenda à Constituição, mas desde que se exija consulta popular.
Uma emenda à Constituição que incorpore elementos parlamentaristas no sistema constitucional, sem consulta popular, viola manifestamente a opção procedimental originária da Constituinte de 1988 e a decisão do povo, constitucionalmente tomada mediante o respectivo procedimento.
Além disso, não se sustenta, historicamente, o argumento de que se trata de garantir a estabilidade política que faltaria ao modelo presidencialista brasileiro. Não decorreu nenhuma estabilidade política no parlamentarismo de 1961 a 1963. Em 16 meses, foram 3 primeiros-ministros, com uma média em torno de 5 meses e 10 dias por governo.
Também não houve estabilidade governamental no pseudoparlamentarismo monárquico, entre 1847 e 1889. Em 42 anos, somaram-se 36 gabinetes, com uma média de cerca de 14 meses para cada governo.
A questão é outra! O caráter casuístico que contorna o debate atual sobre o semipresidencialismo fica evidenciado quando se vislumbra que um candidato que não se adapta ao padrão político conservador de uma sociedade altamente desigual e excludente pode ganhar a próxima eleição presidencial.
No presidencialismo brasileiro atual, a luta programática ocorre fundamentalmente na eleição para a Presidência da República. A aprovação de medidas destinadas a dar ao Congresso Nacional o poder de definir o chefe de governo tende a ser um desastre constitucional, que levará ainda mais à estagnação instável de uma política afogada em lutas de interesses particularistas, sem horizonte programático. Sob o pretexto de introduzir, em parte, algo tão respeitável constitucionalmente (o sistema parlamentarista), expressa-se na proposta “semipresidencialista” o que há de mais demofóbico na política brasileira.
Marcelo Neves – Professor titular de direito público da Faculdade de Direito da UnB, é autor de “Constitutionalism and the Paradox of Principles and Rules” (2021) e “Symbolic Constitutionalization” (2022), ambos pela Universidade de Oxford
Publicado originalmente no jornal FOLHA DE SÃO PAULO.
Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do blog Traço de União.
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