
Viver o Hoje
Nunca a vida foi tão atual como hoje: por um triz é o futuro.
Tempo para mim significa a desagregação da matéria. O apodrecimento do que é orgânico como se o tempo tivesse como um verme dentro de um fruto e fosse roubando a este fruto toda a sua polpa. O tempo não existe. O que chamamos de tempo é o movimento de evolução das coisas, mas o tempo em si não existe. Ou existe imutável e nele nos transladamos.
O tempo passa depressa demais e a vida é tão curta. Então — para que eu não seja engolido pela voracidade das horas e pelas novidades que fazem o tempo passar depressa — eu cultivo um certo tédio. Degusto assim cada detestável minuto. E cultivo também o vazio silêncio da eternidade da espécie.
Quero viver muitos minutos num só minuto.
Quero me multiplicar para poder abranger até áreas desérticas que dão a idéia de imobilidade eterna.
Na eternidade não existe o tempo.
Noite e dia são contrários porque são o tempo e o tempo não se divide. De agora em diante o tempo vai ser sempre atual. Hoje é hoje.
Espanto-me ao mesmo tempo desconfiada por tanto me ser dado. E amanhã eu vou ter de novo um hoje. Há algo de dor e pungência em viver o hoje. O paroxismo da mais fina e extrema nota de violino insistente. Mas há o hábito e o hábito anestesia.
Clarice Lispector, da obra “Um Sopro de Vida”

Clarice Lispector (1920-1977) foi um dos maiores nomes da literatura brasileira do Século XX. Com seu romance inovador e com sua linguagem altamente poética, sua obra se destacou diante dos modelos narrativos tradicionais. Seu primeiro livro, “Perto do Coração Selvagem” recebeu o Prêmio Graça Aranha
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